Segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2006, cerca
de 83% dos brasileiros vivem em cidades.6 Esse “inchaço” dos centros urbanos é
resultante de um modelo de desenvolvimento econômico que, desde o início do
século 20 até hoje, vem diminuindo o emprego no campo e atraindo muita gente
para as cidades em busca de melhores condições de vida. Isso ocorre no mundo
inteiro, não só no Brasil.
Essa fuga para as cidades não foi acompanhada de políticas públicas
que oferecessem aos seus habitantes a tão sonhada qualidade de vida. Viver nas grandes
cidades, hoje, significa enfrentar poluição, congestionamento no trânsito, insegurança
alimentar, violência, falta de saneamento e de moradia. O que as cidades
oferecem em oportunidades, acabam por tirar em qualidade de vida. Pior ainda é
o caso de grupos sociais mais pobres, em geral negros e indígenas.
No mundo inteiro as cidades têm problemas com habitação. Maiores ou menores,
todas apresentam contrastes entre seus habitantes, marcados por desigualdades
no acesso à moradia, educação, alimentação, trabalho, cultura, lazer e
transporte. Esse cenário de desigualdades sociais é mais forte nos países em desenvolvimento
como o Brasil. Em geral, a economia é organizada para conseguir
cada vez mais produtividade, eficiência e lucro (lógica máxima do
capitalismo), que promova a construção de ruas, avenidas, edificações, carros e
bens-consumíveis, e não se preocupa em atender as necessidades reais de seus
habitantes e seus direitos humanos.
Desse modo, compreendemos por que as cidades se tornaram um dos principais
locais das manifestações políticas e dos conflitos sociais; afinal, estes afligem
diretamente a sociedade brasileira atual. Vejamos no quadro a seguir alguns tipos
desses conflitos que, por sua vez, se apresentam de diversas formas: na intolerância e discriminação dos grupos
mais frágeis da sociedade, a
exemplo do que ocorre em São Paulo com migrantes
(nordestinos) e
imigrantes (bolivianos); em todo o Brasil, os
homossexuais, as pessoas em situação de rua e as pessoas praticantes de
religiões de matriz africanas entre outros; na repressão
policial ao comércio ambulante (como camelôs); movimentos dos sem-teto com
as ações de despejo violentas contra ocupações de imóveis (públicos e
privados); aos jovens da periferia, negros, índios e outros; na falta
de vagas nas creches, universidades públicas, leitos nos hospitais;
na total ausência de espaços públicos de convivência,
lazer e de práticas desportivas e culturais, como praças, parques e bibliotecas
nas periferias; nas longas distâncias entre o trabalho e a
residência, falta de transporte público, e na escassez de infra-estrutura, água
e luz, saneamento básico etc.
São vários conflitos, de natureza distinta, o resultado é
uma sociedade cada vez mais dividida entre “incluídos” e “excluídos”. Não é por
acaso que as cidades também se tornaram locais importantes na luta pela
realização dos direitos humanos: a condição de vida urbana e as lutas sociais
ocorridas nas cidades levaram à criação e conquista destes direitos ao longo
dos tempos. Os direitos humanos também são chamados direitos da cidadania.
O que é o direito à cidade?
Nos últimos anos, tem crescido um movimento em todo o mundo pelo
reconhecimento do direito à cidade como direito humano fundamental.
Podemos pensar que o direito à cidade é na verdade um direito de cidadania, uma
vez que se articula com os demais direitos humanos. Todos os habitantes da
cidade devem ter garantidos: seus Direitos
Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais que permitam que as pessoas aproveitem as cidades com
igualdade, dentro dos princípios de
sustentabilidade e justiça social: acesso aos serviços públicos domiciliares e urbanos (saneamento, coleta de lixo
etc.), transporte público e mobilidade urbana,
moradia, educação, trabalho, cultura e lazer,
informação, saúde, alimentação e meio ambiente; seus
Direitos Civis e Políticos: liberdade de ação e organização
(principalmente para os grupos mais vulneráveis), com
respeito à variedade das culturas, que
permitam às pessoas aproveitar seus direitos; poder
viver sem discriminação de qualquer tipo, seja gênero, geração, raça, etnia, origem, linguagem, orientação sexual, política
e religiosa,
preservando a memória e a identidade
cultural.
As lutas por melhores condições de vida e trabalho ganharam força nos últimos
anos, com o envolvimento de novos atores sociais: ONGs, movimentos populares,
associações profissionais, pesquisadores, grupos religiosos, organizações políticas,
entre outros.
Estes atores orientam suas ações para o desenvolvimento sustentável
das cidades, de forma participativa, com igualdade social, respeito às
diferenças e ao meio ambiente. Já surgiram algumas conquistas desta luta, com
importantes documentos e cartas de princípios.
Destacamos alguns: o Tratado Por Cidades, Vilas e
Povoados, Justos, Democráticos e Sustentáveis (1992), a Carta Europeia dos
Direitos Humanos na Cidade (2000) e a Carta Mundial do Direito à
Cidade (2005).
Estes documentos querem influenciar as formas de governança (o modo de
governar) das políticas globais, regionais e nacionais urbanas, de modo que
sejam democráticas e revertam o quadro de desigualdade social nas cidades.
No Brasil, esse movimento se organizou sob a bandeira da reforma
urbana, e ganhou força desde a redemocratização brasileira, a partir
de 1985.
Podemos destacar conquistas como o capítulo da política urbana na
Constituição Brasileira, a promulgação do Estatuto das Cidades - Lei nº.
10.257 (2001)
e a criação do Ministério das Cidades em 2003. Um dos protagonistas desse
movimento foi o Fórum Nacional de Reforma Urbana, que reúne diversos
atores do país na luta pelo direito à cidade.
Esta nova lei prevê a aplicação dos princípios das funções sociais da
cidade e da propriedade: significa que as atividades econômicas e o direito à
propriedade urbana devem atender em primeiro lugar às necessidades humanas, com
base nos direitos humanos e a partir de processos participativos e
democráticos, para depois atender aos interesses de mercado. Prevê também
fortalecer a participação dos
municípios em políticas públicas que assegurem os direitos aos seus
habitantes, com participação popular, inclusive dos setores que mais sofrem com
desigualdade econômica e social. Alguns exemplos dessa nova forma de fazer
política são os Conselhos e Conferências das cidades, além dos Orçamentos
Participativos.
As novas leis significam esforços para criar instrumentos jurídicos e
políticos que promovam a transformação necessária das cidades
brasileiras, possibilitando a humanização das relações sociais, minimização das
desigualdades sociais e eliminação da segregação sócio-espacial.
Conflitos do direito à cidade
A maioria dos conflitos que vêm da luta pelo direito à cidade estão
ligadas à moradia. Mas é importante lembrar que a cidade não é apenas um espaço
para morar: é um espaço para viver, e isso inclui trabalho, saúde, transporte,
lazer... ou seja, todas as dimensões de uma vida digna.
Portanto, precisamos ter uma política habitacional, onde os conjuntos
populares não sejam construídos apenas nas periferias, (longe do
mercado de trabalho e com dificuldade de transporte público). Especialmente
quando existem áreas e prédios vazios nas regiões centrais das cidades, devemos
buscar “Revitalização do centro”, essa ideia que está tão na moda atualmente,
não pode significar apenas prédios de fachadas bonitas, com ruas arborizadas,
porém vazias.
É preciso trazer pessoas para morar no centro – inclusive as pessoas
mais pobres, que tem menos dinheiro para gastar com necessidades básicas (por
exemplo, com transporte), e que podem aproveitar melhor a estrutura e os
serviços das regiões centrais (ônibus, escolas, postos de saúde, água e esgoto
etc.).
Os processos de revitalização dos centros, na maioria das cidades
brasileiras, são normalmente um processo de “gentrificação”. O
objetivo básico desse processo é valorizar os imóveis da região central,
retirando a população mais pobre e tentando atrair as classes mais ricas e
grandes empresas. Muitas pessoas a favor da “revitalização” querem acabar com o
crime e remover a miséria nas partes centrais das cidades. O erro desta
perspectiva é que, ao invés de resolver o problema (crime, drogas, miséria
etc.), a gentrificação apenas expulsa a população mais pobre, para a periferia,
para regiões de mananciais, margens de rios etc.
Um dos processos de gentrificação mais estudados na história do Brasil
ocorreu no Rio de Janeiro, no começo do século XX, no governo do presidente Rodrigues
Alves. Havia muitos cortiços e moradias miseráveis no Centro Velho do Rio, que
se tornaram focos de doenças como febre amarela e peste bubônica. Para combater
estas doenças, o governo resolveu demolir a maior parte dos cortiços, e a população
pobre teve que passar a viver nos morros cariocas. Foi também nesse
período que ocorreu a Revolta da Vacina, quando a população reagiu
contra a forma violenta e autoritária que o governo vinha empregando na
implantação de seus programas de saúde.
Todos têm direito à cidade, desde o morador de rua até o grande
empresário. Isso inclui também o direito a poder andar na rua sem medo de ser
assaltado, um transporte público de qualidade, viver em espaços sem poluição e
com acesso a lazer: seja futebol, teatro, shows, cinema ou parques.
Fonte: Material do Curso
Direitos Humanos e Mediação de Conflitos
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