Com o resultado
do primeiro turno das eleições, os números nos convidam a refletir sobre uma
tríplice dimensão. Três dimensões protagonizadas por três figuras envolvidas no
pleito: Marina da Silva, Tiririca e o Presidente Lula.
Comecemos com
este último. O tom dos discursos de Lula nas derradeiras semanas do processo
eleitoral, acrescido de uma atitude demasiadamente palanquista, revelaram
sinais inequívocos de prepotência e arrogância. Mas revelaram, por outro lado, que o
cidadão está vacinado contra essa atitude do “já ganhamos”. As imagens não
deixam dúvidas: a voz rouca, os gritos contra adversários que mais parecem
inimigos do bem, o dedo em riste e a petulância de que “fizemos o melhor
governo”. O resultado não se fez esperar: a esperança de comemorar vitória no
primeiro turno foi uma vez mais adiada.
A cultura
democrática brasileira avança mui lentamente, é verdade, mas avança. Ainda prevalecem o caudilhismo, o
coronelismo, o autoritarismo, o centralismo, o messianismo, o personalismo, e
tantos outros “ismos”. Grande parte da população ainda se deixa embalar por
esse tipo de auto-suficiência dos salvadores da pátria. Mas há cidadãos – e
eles tendem a crescer – que sonham, lutam e esperam por estruturas efetivamente
democráticas, onde a dinâmica livre da crítica e autocrítica faz do terreno
político o campo de posições e de oposições legítimas. Pessoas que entendem que
o bem e mal se mesclam no calor dos debates e que já se foi o tempo de
fronteiras demarcadas entre os “nossos”, patriotas irrepreensíveis, e os
“outros”, inimigos do povo e da nação. Os matizes da disputa política são bem
mais complexos do que os esquemas estreitos e dualistas dos gladiadores. Heróis
e vilões, mocinhos e bandidos, nunca estão de um lado só – a não ser nos filmes
de farwest norte-americano.
Tem mais: a terra
se nutre de chuva fina, não de tempestades. As tempestades arrastam tudo pela
frente e devastam o solo. Só a chuva mansa penetra e irriga para o plantio. Os
gritos em praça pública, como trovões que caem de cima do palanque sobre a
multidão, tendem a um efeito contrário. A agressividade do discurso pode
representar um tiro no pé. Uma pedra atirada sobre o outro muitas vezes cai em
primeiro lugar sobre nossa própria cabeça; as palavras envenenadas, se e quando
soltas petulantemente ao vento, tendem a envenenar o coração de quem as vomita.
O comportamento do Presidente Lula na reta final das eleições pode explicar
algo da queda de Dilma Rousseft.
Quanto ao
fenômeno Tiririca, a situação nos remete ao caso do rinoceronte Cacareco,
“personagem” bem votada quando se podia escrever na cédula o nome do candidato.
Hoje a urna eletrônica não permite escrever nomes, mas as figuras inusitadas e
apresentam por si mesmas. Alguns jornais estrangeiros, com um olhar à
distância, um tanto quanto míope mas não de todo improvável, noticiaram que o
Brasil elegeu um palhaço para a Câmara Federal. Mais do que eleger um
comediante, os que esses votos nos dizem é que o processo eleitoral, em grande
medida não passa de uma comédia. Nos países ocidentais, a democracia como ela
hoje se apresenta tornou-se um baluarte firme para a manutenção dos privilégios
da classe dominante. Através de uma pretensa escolha, os eleitores legitimam o arcabouço
legal das assimetrias e desigualdades socioeconômicas.
Há vícios
históricos e estruturais praticamente insolúveis. O poder da mídia e do
marketing, da riqueza e da renda, da publicidade e da propaganda fabrica
imagens de políticos que pouco ou nada tem a ver com o cotidiano de dores,
lutas e sonhos da população. Políticos devidamente maquiados e colocados na
vitrine da “telinha” para a escolha “livre” dos clientes. Linguagem de mercado
no mundo da política. Simultaneamente encantado, seduzido e ofuscado pelos
holofotes, câmeras e microfones dessas “mercadorias fascinantes e profusamente
iluminadas”, não é difícil induzir à compra – ou ao voto. Numa palavra, já que
tudo não passa de uma palhaçada, porque não eleger um palhaço! Nota-se uma
coerência ao mesmo tempo perversa e sardônica por trás desse mais de um milhão
de votos no Tiririca.
No caso da Marina
Silva (e não seria exagero acrescentar o Plínio de Arruda Sampaio), o enfoque
muda completamente. Entre a maioria de um eleitorado descontente e desiludido,
desencantado e desestimulado com a política, há os que procuram algo novo ou
inovador. Quando se combina isso com a emergência progressiva, nas últimas
décadas, da consciência ecológica, a votação crescente na Marina e no partido
verde torna-se mais ou menos transparente. Cientistas, movimentos
ambientalistas, políticos e organizações não governamentais não se cansam de
alertar para os riscos do aquecimento global, da contaminação das águas e
desertificação do solo, da devastação e uso incorreto dos recursos naturais, da
emissão de gás carbônico na atmosfera. Crescem as ameaças ao meio ambiente e à
vida em sua diversidade, mas cresce igualmente a responsabilidade de reverter o
quadro em termos de uma economia solidária e sustentável.
Três candidaturas,
três comportamentos e três resultados que atestam a complexidade do eleitorado
brasileiro. E que costumam virar pelo avesso qualquer tipo de análise ou
pesquisa prévia. O certo é que, em meio a uma enxurrada de escândalos e de
atitudes de corrupção, com os instrumentos do projeto “ficha limpa” e da lei 9840, a população busca
alternativas. Recusando a estridência dos discursos palanqueiros e do
marketing, tachado de palhaçada um processo onde o povo é chamado a optar pelos
já escolhidos, ou abrindo picadas inéditas nessa selva escura – a população
busca algo novo!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
OBS: Texto enviado, através de email, por minha querida
amiga Carmem Lúcia.
Um comentário:
Eu sou fã deste padre. Ele realmente é uma pessoa lógica, lúcida e verdadeira. Parabéns
Vou postar no Leio, mais enchuto e indicar seu blog como referencia.
bjussss
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